Harder, Better, Faster, Stronger
De uns anos pra cá, desenvolvi a síndrome da Bagagem Paga, reconhecida entre especialistas a partir do caso da mudança nas regras de cobrança por bagagens por companhias aéreas, com a promessa de que, com isso, as passagens iriam ficar mais baratas. O resultado é o que todo mundo já conhece: passagens custando um rim e se precisar levar uma mala, fica o fígado e o pâncreas também.
Preciso registrar que nem sempre tive essa síndrome. Em geral, sempre fui desses entusiastas de qualquer novidade que aparecia, early adopter de várias tecnologias, especialmente as digitais.
No caso da Internet, eu ainda insisto em cultivar a ideia de que este é um espaço para a livre circulação do conhecimento humano, que potencializa nossas virtudes na construção de uma sociedade mais livre, igualitária e fraterna. E eu cultivo essa ideia porque foi isso que me venderam lá atrás, quando tudo isso aqui ainda era mato e só tinha um quiosque do ICQ lá no cantinho da praia, perto dos caiçaras, onde o pessoal batia papo animadamente.
Mas me enganaram. As redes sociais que vieram, a princípio, pra gente poder retomar contato com a galera do terceirão, mudaram todo o jogo. Elas tornaram a internet cada vez menos livre, ajudando a aprofundar divisões e difundindo as teorias conspiratórias das mais bizarras. A livre circulação do conhecimento foi bloqueada pelo domínio dos algoritmos buscando audiência a partir do engajamento causado pelas ideias mais estapafúrdias de uns e outros por aí.
Ou seja: a promessa da passagem mais barata, no caso o mundo iluminado pelo conhecimento, foi convertida na passagem mais cara, que é o mundo cada vez mais dividido e com gente acreditando que tem microchip em vacina.
Essa síndrome é a que me impede hoje de me animar com a avalanche de soluções baseadas em inteligência artificial, que irão tornar nossa vida muito mais simples, as empresas muito mais eficientes e etc e tal.
Óbvio que se a gente usar isso de uma forma razoável, podemos ter muitos benefícios. O problema é que se existe uma mínima possibilidade da turma em fazer algo errado, essa é exatamente a possibilidade que será explorado pela galera, antes de todas as outras. E fazer algo errado turbinado pelas potencialidades que a inteligência artificial apresenta pode dar problema muito sério. Por isso, toda prudência é pouca.
Então resumindo, ainda na metáfora da síndrome da Bagagem Paga: se o pessoal puder cobrar até pelo cabelo mais comprido antes de você embarcar no voo, eles vão cobrar. Sem choro nem vela. E a passagem, ela vai sempre subir de preço, não importa a circunstância.
No mais, por hoje é isso.
*****
Música de hoje é Harder, Better, Faster, Stronger do Daft Punk. Afinal, é disso que a gente tá falando ao admitir a IA em tudo que é canto, esse troço de avançar sem freio na tecnologia em prol de cada vez mais produtividade para o benefício de cada vez menos gente (essa última parte é crítica minha mesmo).
*****
DICAS DA NEWSLETTER
DICA#1
RIPLEY na Netflix. Série em 8 episódios, suspense. Só vai, assiste e depois me conta.
DICA#2
Newsletter Praticamente Interessante do Ricardo Terto, ex-colega de trabalho e dono de um texto que dá gosto de ler.
DICA#3
Se você não tá com tempo pra encarar a tetralogia sobre a Ditadura Militar no Brasil, por Elio Gaspari, ouça o podcast A Ditadura Recontada. Eu curto muito história e os livros são mesmo um puta trabalho de registro histórico dos anos de chumbo. Num momento que tem gente achando melhor voltar a viver sob comando de generais, fica a dica para consumir o podcast, que sintetiza muito bem o conteúdo dos livros. Até agora, 4 episódios, mas vem mais por aí. Pelo menos uns 2 ou 3 ainda.
DICA#4
Como prometido, mantendo ainda a dica de Contra Fogo do queridíssimo Pablo Casella. Sobre esse livro, eu escrevi um troço que não chega a ser nem crítica e nem resenha, mas tá lá pra vocês conferirem: